“São necessários gestos novos, espetaculares e simbólicos para tirar as pessoas da sonolência, balançar as consciências anestesiadas e acordar as memórias das origens”.
Esse é um trecho de um suicida. Ele se matou com um tiro na boca dentro da Catedral de Notre Dame de Paris, em maio de 2013. Uma morte espetacular, como ele queria. Esse trecho foi retirado de sua “carta-testamento”, encontrada junto a seu corpo, diante do altar.
Mas o que queriam dizer essas palavras de efeito? Por que se matou esse historiador de 78 anos, ativista de extrema-direita? Segundo sua carta, por causa da aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo na França, no ano de 2013, e da contínua entrada de imigrantes no país. As palavras são duras, mas a verdade é que se tratava de um homofóbico racista. Um combo de preconceitos, um arquétipo da extrema-direita, um modelo, um ícone, um mártir: do conservadorismo.
Não pense que ele foi o único a protestar. Milhares de pessoas (eu disse milhares) saíram em protesto em Paris contra a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo (e nós que achávamos essa França tão “avançada”...), alguns desses protestos voltaram a ocorrer agora, em fevereiro de 2014.
Temem lá o mesmo que temem alguns grupos do Brasil: a pretensa destruição da “tão antiga” instituição da família, lembrada pelo suicida nas palavras “memórias” e “origens”. Família, essa, heteronormativa: simbolicamente representada, e por séculos reforçada, nas imagens de um pai (José), uma mãe (Maria) e um bebê (Jesus). A Sagrada Família. E por sagrada, imutável, inquestionável. Muitos acreditam que ao espelho dela se fazem as outras. Ao falar de “origens” e “memória”, esse é o mais longe que conseguem ir muitos conservadores: em Cristo. Não que eles não conheçam povos sambaquieiros, civilizações chinesas, egípcias, gregas e o Império Romano: conhecem sim. Mas para falarem de “família”, eles não retroagem a esses períodos, pois argumentam que ali era “antes de Deus”. Quando os homens pecavam e adoravam ídolos.
Pois em 2013, mesmo ano do reboliço francês pró e contra direitos civis igualitários, eis que foi inaugurada uma exposição temporária em um dos museus mais famosos do mundo: o Museu d’Orsay. Uma exposição que, mesmo ao fazer o recorte temporal “desde 1800 até os dias de hoje”, conseguiu ultrapassar as origens temporais de muitos conservadores. Afinal, sabemos que o Neoclassicismo, que dominava a arte europeia por grande parte dos anos 1800, inspirava-se nos padrões artísticos do Classicismo. Sim, o Classicismo greco-romano, aquele tal período supostamente pecaminoso. E qual o tema dessa exposição, para ter origens tão antigas? O homem. Ou melhor: o nu masculino.
("Lúcifer, o Anjo caído", Alexandre Cabanel)
É: só homens. Muitos, muitos homens! Homens por todos os lados. Séculos de homens, em mármore e em tinta. Paredes, corredores e salas de homens nus. A exposição chamava-se “Masculin/Masculin”, assim, forte como dois socos: Masculin/Masculin.
E antes que alguém venha tacar pedra, falar sobre um pretenso mau gosto em juntar tantos homens nus, ou dizer que a “ditadura gay” já chegou aos museus, faça a si mesmo a pergunta que o presidente do Museu d’Orsay (Guy Cogeval) fez a si mesmo:
“Por que nunca houve uma exposição de nus masculinos”?
Essa pergunta ele se fez, atônito, em Viena, no ano de 2012, quando viu a primeira exposição dedicada unicamente ao nu masculino, no Museu Leopold.
Como pode, não é?! A nudez na arte é tão comum... Tanto a feminina como a masculina sempre estiveram presentes nas artes plásticas. O estudo do nu, inclusive, é uma das bases do aprendizado do desenho da figura humana. Estamos acostumados a ver aqui e acolá uma estátua nua, próxima de outra vestida, além de quadros de nudez ou seminudez de homens e mulheres colocados ao lado de quadros de paisagens marinhas, campos floridos, naturezas mortas, retratos imperiais, cenas bíblicas ou de batalhas históricas: assim costumam ser as exposições permanentes dos museus de arte. Ninguém se choca: há um pouco de tudo.
Mas e se juntássemos, numa exposição temporária, apenas obras de arte que representassem a nudez? Mulheres, homens, crianças, idosos, todos em seu estado natural, celebrando a condição humana. Isso já foi feito, em menor ou maior proporção. Sobretudo com o nu feminino: mulheres nuas existem aos borbotões, nas artes plásticas, na mídia, na propaganda, etc. Estamos acostumados e isso já não choca mais.
Mas nunca houve uma reunião de grandes obras de nus masculinos em um museu, antes do Leopold em 2012 e do d’Orsay em 2013-2014: pasmem! Por que a reunião de homens nus choca tanto a sociedade? Por que houve tanta celeuma, tantas críticas ao Museu d’Orsay ter abraçado a ideia do Museu Leopold?! Acredito que trata-se, em menor ou maior grau, de homofobia: a reunião de homens nus nos remete ao universo gay, ao amor entre homens. E isso os conservadores não podiam aceitar dentro de uma das instituições mais consagradas da cultura francesa: o Museu d’Orsay.
É importante notar a oportunidade do momento, a coragem e o posicionamento político de toda a direção do museu em levar adiante essa exposição no ano de 2013! Era ali, enquanto os protestos contra o casamento gay reuniam milhares de pessoas em várias cidades do país, que o museu abria as portas para uma exposição para a qual muitos torceram o nariz por acreditar ser “apologia gay”, “ditadura gay”, “arte gay”. A direção do museu não se importou e seguiu adiante.
Tratava-se, apenas, da representação da nudez masculina desde o Neoclassicismo até os dias de hoje. Havia sim um espaço dedicado ao homossexualismo, mas ele não era o todo da exposição, e a direção do museu não iria apagá-la. Vamos, então, ver como era sua disposição:
Masculin/Masculin possuía obras tanto de artistas franceses quanto de outras nacionalidades. Como o recorte temporal dizia de “1800 até hoje”, além das obras oitocentistas também havia as contemporâneas (sempre as mais chocantes aos olhos mais sensíveis). Obras famosas do próprio acervo do d’Orsay foram deslocadas para a exposição, ali havia pesos-pesados da pintura, como os pintores Acadêmicos Jacques-Louis David, Girodet e Bouguereau. Esculturas tanto de Rodin, como do hoje surpreendente escultor hiper-realista Ron Mueck.
Embora não fosse estritamente cronológica, mas sim temática, a exposição começava com a nudez Neoclássica. Podemos dizer que desde meados do século XVIII, avançando por muitas décadas do século XIX, a pintura europeia vivia sob as normas ditadas pelos ideais da Antiguidade: a era da beleza absoluta. Uma era de rigor e vigor aos corpos masculinos: o ideal apolíneo. Para os gregos, o nu masculino na arte não estava ligado propriamente ao sexo, mas a uma mistura de força tanto física quanto moral. Portanto, um tipo viril que revelava uma alma distinta.
Assim inspirados, os artistas neoclássicos dos oitocentos só pintavam uma nudez masculina que aparecesse na figura de um herói ou um Deus (da mitologia greco-romana ou passagens/personagens bíblicos). A nudez não era gratuita, servia para mostrar a perfeição tanto física quanto de caráter (uma simbiose indestrutível, que entendia o bom como belo, o nobre como belo, a verdade como bela: uma ideologia na qual a representação da pureza e da verdade moral só podia estar associada à perfeição física, idealizada). Aquele corpo desnudo servia para mostrar uma ação heroica, um grande feito.
A alma se mostrava ainda mais distinta quando o corpo estava integralmente despido, do que quando estava dissimulado por vestimentas. Na nudez havia a verdade.
("Academia do homem, ou Pátroclo". Jacques Louis David)
Um dos grandes propulsores desses ideais neoclássicos foi o arqueólogo e historiador da arte Johann Winckelmann, que julgava o “Torso Belvedere” (torso nu, fragmentado pelo tempo, pois foi produzido no século 1 a.C., do escultor ateniense Apolônio, representando Hércules, presente no Museu do Vaticano desde 1530) as proporções perfeitas. Tão em voga nos oitocentos, o Torso Belvedere foi copiado por muitos escultores e, como não podia deixar de ser, uma dessas cópias estava logo na primeira sala da exposição Masculin/Masculin.
(Torso Belvedere)
É natural que um estilo que pregue a beleza corporal (ainda que para revelar alma e caráter, e não por conotação sexual) chame a atenção daqueles que se interessam sexualmente pela figura masculina (sejam mulheres ou homens). É quase um desvirtuamento do propósito da obra, mas aos olhos da libido nada passa. Talvez seja por essa razão que o casal de artistas franceses, Pierre et Gilles, tenha escolhido trabalhar o nu masculino idealizado desde a década de 1970. Pierre Commoy, fotógrafo, e Gilles Blanchard, pintor, são casados e trabalham juntos em obras que misturam elementos da cultura pop com ícones religiosos, mitológicos, e da cultura gay, construindo uma estética kitsch carregada de simbolismo. Não errou o Museu d’Orsay ao colocar uma de suas obras, Mercúrio, de 2001, logo na abertura da exposição, introduzindo o Neoclassicismo, ao lado de uma obra de 1787, Le Berger Pâris, do pintor Desmarais. Tão linda, tão forte e teatral aquela fotografia retocada pela pintura, tornou-se a imagem célebre da exposição, espalhada em cartazes por toda a cidade.
("Mercúrio", Pierre et Gilles)
Na exposição havia também as salas aos “Deuses dos estádios”, esportistas desde a antiguidade clássica até hoje. Logo na entrada, éramos recebidos por uma seção de fotos de 1887, uma luta greco-romana e um homem saltando com vara (todos nus, pois eram fotos para estudos corporais), apresentadas como vídeo antigo, em precário movimento. Nessas salas havia outra obra de Pierre et Gilles, chamada Vive La France, de 2006. Essa foto faria o historiador suicida do início do texto voltar à vida só para se matar novamente, pois além de abordar a imigração ao país – percebida pela coloração de pele negra, morena e branca dos jogadores da seleção francesa de futebol – eles estão em nu frontal.
("Vive la France", Pierre et Gilles)
Mas nem só de beleza física (seja representando a moral ou o esporte) viveu essa exposição. Também havia as salas sobre a ação do tempo no corpo humano, a velhice e a morte. Quadros realistas do final do século XIX ou já do século XX, que mostravam o corpo humano sem as idealizações neoclássicas, tinham lugar nessas salas, como o quadro de Lucian Freud, neto do famoso psicanalista Sigmund Freud. É nesta ala que teve destaque uma escultura hiper-realista do impressionante Ron Mueck, Pai morto. Esse escultor australiano (hoje baseado na Inglaterra) costuma esculpir em escala fora do padrão humano, optando pelo gigantismo ou nanismo de suas esculturas, sempre respeitando as exatas proporções do corpo. Em Pai morto é possível ver os pelos da perna do cadáver, já grisalhos pela velhice, as rugas, o ar cadavérico: parece real, não fosse o tamanho diminuto. Acima dele, outra obra Neoclássica, de Bouguereau, também representando a morte.
("Dead dad", Ron Mueck. Atrás o quadro de Bouguereau)
("David and Eli", Lucian Freud)
E claro que também havia a sala sobre “o homem desejado”, representando a homossexualidade evidente; e a sala “aventura ambígua”, revelando inúmeras obras do século XIX que possivelmente tentavam abordar a homossexualidade, mas não podiam ser tão claras e se utilizavam de artifícios. Na entrada da ala “o homem desejado”, havia uma placa de advertência a quem pudesse se chocar com o que fosse ver lá dentro, assim quem quisesse dar meia volta, pegaria outro caminho da exposição. Apesar do aviso, ali não havia nada demais: uma fotografia antiga mostrando um beijo, ou um quadro de rapazes andando de bicicleta, um deles com a parte pontiaguda do banquinho sugestivamente entre as nádegas do ciclista, entre outros quadros.
Em “aventura ambígua” era realmente interessante ver quantos subterfúgios eram necessários para conseguir representar uma temática possivelmente homossexual no século XIX. Havia, por exemplo, quadros de São Sebastião flechado. Outra possibilidade era representar, dentro dos ditames do Neoclassicismo reinante, figuras da antiguidade clássica, que claramente tivessem alguma amizade muito forte: como Aquiles e Pátroclo da Ilíada; ou Apolo e Ciparisso da mitologia. Nesse caso, faziam uso de corpos mais andrógenos, menos musculosos. Uma das formas (praticamente a única forma) de mostrar o amor entre os personagens era na morte, pois ao apoiar ternamente o corpo do amigo que morre, ninguém poderia criticar suas lágrimas de dor.
("A morte de Hyacinthe", Jean Broc)
("Apolo e Ciparisso", Claude-Marie Dubuffe)
O último quadro da exposição, terminando também a jornada pela “aventura ambígua” é o quadro simbolista Escola de Platão, de 1898, de Jean Delville. Nesta tela, na qual a figura central se parece com a imagem europeia difundida de Jesus Cristo, há vários alunos, alguns têm flores na cabeça, outros se abraçam e se olham ternamente: parecem estar todos em “amor platônico” uns com os outros.
("Escola de Platão", Jean Delville)
Apesar de todas as críticas – ou muito por causa delas – Masculin/Masculin foi um sucesso de público. Filas intermináveis se formavam do lado de fora do museu e a exposição, que iria de 24 de setembro de 2013 a 02 de janeiro de 2014, foi prorrogada por mais algumas semanas. Eram tantas pessoas, que as salas estavam – como diz um dos quadros expostos – about to explode!
("About to explode", Eminem, David LaChapelle)
Nestes tempos difíceis (em que vemos revogação na Austrália da lei que permitia o casamento entre pessoas do mesmo sexo, Olimpíadas de Inverno em Sochi na homofóbica Rússia, bancadas evangélicas que só crescem no Brasil, hordas noturnas que querem expulsar os gays a pauladas do Aterro do Flamengo, passeatas contra a igualdade civil na França), é bom ao menos vermos exposições assim: com timing político, enfrentando questões atuais, sem se evadir de uma parte de provocação.
E apesar de tudo, eu ainda me fixo nos progressos recentes e acredito que seja por causa deles, tão evidentes, que as reações conservadoras vêm crescendo. Ao menos no Brasil, eu olho ao redor e vejo que as pessoas se casam! Vi até as pessoas aplaudirem uma novela na qual um casal de homens se beija (mesmo que uma vez só e no último capítulo).
E eu, que sou romântica e entusiasta do casamento de todos, só posso ficar “about to explode” ao sair de uma exposição tão linda como essa.