Páginas

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Masculin/Masculin – Museus e política.

“São necessários gestos novos, espetaculares e simbólicos para tirar as pessoas da sonolência, balançar as consciências anestesiadas e acordar as memórias das origens”.

Esse é um trecho de um suicida. Ele se matou com um tiro na boca dentro da Catedral de Notre Dame de Paris, em maio de 2013. Uma morte espetacular, como ele queria. Esse trecho foi retirado de sua “carta-testamento”, encontrada junto a seu corpo, diante do altar.

Mas o que queriam dizer essas palavras de efeito? Por que se matou esse historiador de 78 anos, ativista de extrema-direita? Segundo sua carta, por causa da aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo na França, no ano de 2013, e da contínua entrada de imigrantes no país. As palavras são duras, mas a verdade é que se tratava de um homofóbico racista. Um combo de preconceitos, um arquétipo da extrema-direita, um modelo, um ícone, um mártir: do conservadorismo.

Não pense que ele foi o único a protestar. Milhares de pessoas (eu disse milhares) saíram em protesto em Paris contra a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo (e nós que achávamos essa França tão “avançada”...), alguns desses protestos voltaram a ocorrer agora, em fevereiro de 2014.

Temem lá o mesmo que temem alguns grupos do Brasil: a pretensa destruição da “tão antiga” instituição da família, lembrada pelo suicida nas palavras “memórias” e “origens”. Família, essa, heteronormativa: simbolicamente representada, e por séculos reforçada, nas imagens de um pai (José), uma mãe (Maria) e um bebê (Jesus). A Sagrada Família. E por sagrada, imutável, inquestionável. Muitos acreditam que ao espelho dela se fazem as outras. Ao falar de “origens” e “memória”, esse é o mais longe que conseguem ir muitos conservadores: em Cristo. Não que eles não conheçam povos sambaquieiros, civilizações chinesas, egípcias, gregas e o Império Romano: conhecem sim. Mas para falarem de “família”, eles não retroagem a esses períodos, pois argumentam que ali era “antes de Deus”. Quando os homens pecavam e adoravam ídolos.


Pois em 2013, mesmo ano do reboliço francês pró e contra direitos civis igualitários, eis que foi inaugurada uma exposição temporária em um dos museus mais famosos do mundo: o Museu d’Orsay. Uma exposição que, mesmo ao fazer o recorte temporal “desde 1800 até os dias de hoje”, conseguiu ultrapassar as origens temporais de muitos conservadores. Afinal, sabemos que o Neoclassicismo, que dominava a arte europeia por grande parte dos anos 1800, inspirava-se nos padrões artísticos do Classicismo. Sim, o Classicismo greco-romano, aquele tal período supostamente pecaminoso. E qual o tema dessa exposição, para ter origens tão antigas? O homem. Ou melhor: o nu masculino.

("Lúcifer, o Anjo caído", Alexandre Cabanel)

É: só homens. Muitos, muitos homens! Homens por todos os lados. Séculos de homens, em mármore e em tinta. Paredes, corredores e salas de homens nus. A exposição chamava-se “Masculin/Masculin”, assim, forte como dois socos: Masculin/Masculin.

E antes que alguém venha tacar pedra, falar sobre um pretenso mau gosto em juntar tantos homens nus, ou dizer que a “ditadura gay” já chegou aos museus, faça a si mesmo a pergunta que o presidente do Museu d’Orsay (Guy Cogeval) fez a si mesmo:

“Por que nunca houve uma exposição de nus masculinos”?

Essa pergunta ele se fez, atônito, em Viena, no ano de 2012, quando viu a primeira exposição dedicada unicamente ao nu masculino, no Museu Leopold.

Como pode, não é?! A nudez na arte é tão comum... Tanto a feminina como a masculina sempre estiveram presentes nas artes plásticas. O estudo do nu, inclusive, é uma das bases do aprendizado do desenho da figura humana. Estamos acostumados a ver aqui e acolá uma estátua nua, próxima de outra vestida, além de quadros de nudez ou seminudez de homens e mulheres colocados ao lado de quadros de paisagens marinhas, campos floridos, naturezas mortas, retratos imperiais, cenas bíblicas ou de batalhas históricas: assim costumam ser as exposições permanentes dos museus de arte. Ninguém se choca: há um pouco de tudo.

Mas e se juntássemos, numa exposição temporária, apenas obras de arte que representassem a nudez? Mulheres, homens, crianças, idosos, todos em seu estado natural, celebrando a condição humana. Isso já foi feito, em menor ou maior proporção. Sobretudo com o nu feminino: mulheres nuas existem aos borbotões, nas artes plásticas, na mídia, na propaganda, etc. Estamos acostumados e isso já não choca mais.

Mas nunca houve uma reunião de grandes obras de nus masculinos em um museu, antes do Leopold em 2012 e do d’Orsay em 2013-2014: pasmem! Por que a reunião de homens nus choca tanto a sociedade? Por que houve tanta celeuma, tantas críticas ao Museu d’Orsay ter abraçado a ideia do Museu Leopold?! Acredito que trata-se, em menor ou maior grau, de homofobia: a reunião de homens nus nos remete ao universo gay, ao amor entre homens. E isso os conservadores não podiam aceitar dentro de uma das instituições mais consagradas da cultura francesa: o Museu d’Orsay.

É importante notar a oportunidade do momento, a coragem e o posicionamento político de toda a direção do museu em levar adiante essa exposição no ano de 2013! Era ali, enquanto os protestos contra o casamento gay reuniam milhares de pessoas em várias cidades do país, que o museu abria as portas para uma exposição para a qual muitos torceram o nariz por acreditar ser “apologia gay”, “ditadura gay”, “arte gay”. A direção do museu não se importou e seguiu adiante.

Tratava-se, apenas, da representação da nudez masculina desde o Neoclassicismo até os dias de hoje. Havia sim um espaço dedicado ao homossexualismo, mas ele não era o todo da exposição, e a direção do museu não iria apagá-la. Vamos, então, ver como era sua disposição:

Masculin/Masculin possuía obras tanto de artistas franceses quanto de outras nacionalidades. Como o recorte temporal dizia de “1800 até hoje”, além das obras oitocentistas também havia as contemporâneas (sempre as mais chocantes aos olhos mais sensíveis). Obras famosas do próprio acervo do d’Orsay foram deslocadas para a exposição, ali havia pesos-pesados da pintura, como os pintores Acadêmicos Jacques-Louis David, Girodet e Bouguereau. Esculturas tanto de Rodin, como do hoje surpreendente escultor hiper-realista Ron Mueck.

Embora não fosse estritamente cronológica, mas sim temática, a exposição começava com a nudez Neoclássica. Podemos dizer que desde meados do século XVIII, avançando por muitas décadas do século XIX, a pintura europeia vivia sob as normas ditadas pelos ideais da Antiguidade: a era da beleza absoluta. Uma era de rigor e vigor aos corpos masculinos: o ideal apolíneo. Para os gregos, o nu masculino na arte não estava ligado propriamente ao sexo, mas a uma mistura de força tanto física quanto moral. Portanto, um tipo viril que revelava uma alma distinta.

Assim inspirados, os artistas neoclássicos dos oitocentos só pintavam uma nudez masculina que aparecesse na figura de um herói ou um Deus (da mitologia greco-romana ou passagens/personagens bíblicos). A nudez não era gratuita, servia para mostrar a perfeição tanto física quanto de caráter (uma simbiose indestrutível, que entendia o bom como belo, o nobre como belo, a verdade como bela: uma ideologia na qual a representação da pureza e da verdade moral só podia estar associada à perfeição física, idealizada). Aquele corpo desnudo servia para mostrar uma ação heroica, um grande feito.

A alma se mostrava ainda mais distinta quando o corpo estava integralmente despido, do que quando estava dissimulado por vestimentas. Na nudez havia a verdade.

("Academia do homem, ou Pátroclo". Jacques Louis David)

Um dos grandes propulsores desses ideais neoclássicos foi o arqueólogo e historiador da arte Johann Winckelmann, que julgava o “Torso Belvedere” (torso nu, fragmentado pelo tempo, pois foi produzido no século 1 a.C., do escultor ateniense Apolônio, representando Hércules, presente no Museu do Vaticano desde 1530) as proporções perfeitas. Tão em voga nos oitocentos, o Torso Belvedere foi copiado por muitos escultores e, como não podia deixar de ser, uma dessas cópias estava logo na primeira sala da exposição Masculin/Masculin.

(Torso Belvedere)

É natural que um estilo que pregue a beleza corporal (ainda que para revelar alma e caráter, e não por conotação sexual) chame a atenção daqueles que se interessam sexualmente pela figura masculina (sejam mulheres ou homens). É quase um desvirtuamento do propósito da obra, mas aos olhos da libido nada passa. Talvez seja por essa razão que o casal de artistas franceses, Pierre et Gilles, tenha escolhido trabalhar o nu masculino idealizado desde a década de 1970. Pierre Commoy, fotógrafo, e Gilles Blanchard, pintor, são casados e trabalham juntos em obras que misturam elementos da cultura pop com ícones religiosos, mitológicos, e da cultura gay, construindo uma estética kitsch carregada de simbolismo. Não errou o Museu d’Orsay ao colocar uma de suas obras, Mercúrio, de 2001, logo na abertura da exposição, introduzindo o Neoclassicismo, ao lado de uma obra de 1787, Le Berger Pâris, do pintor Desmarais. Tão linda, tão forte e teatral aquela fotografia retocada pela pintura, tornou-se a imagem célebre da exposição, espalhada em cartazes por toda a cidade.

("Mercúrio", Pierre et Gilles)

Na exposição havia também as salas aos “Deuses dos estádios”, esportistas desde a antiguidade clássica até hoje. Logo na entrada, éramos recebidos por uma seção de fotos de 1887, uma luta greco-romana e um homem saltando com vara (todos nus, pois eram fotos para estudos corporais), apresentadas como vídeo antigo, em precário movimento. Nessas salas havia outra obra de Pierre et Gilles, chamada Vive La France, de 2006. Essa foto faria o historiador suicida do início do texto voltar à vida só para se matar novamente, pois além de abordar a imigração ao país – percebida pela coloração de pele negra, morena e branca dos jogadores da seleção francesa de futebol – eles estão em nu frontal.

("Vive la France", Pierre et Gilles)

Mas nem só de beleza física (seja representando a moral ou o esporte) viveu essa exposição. Também havia as salas sobre a ação do tempo no corpo humano, a velhice e a morte. Quadros realistas do final do século XIX ou já do século XX, que mostravam o corpo humano sem as idealizações neoclássicas, tinham lugar nessas salas, como o quadro de Lucian Freud, neto do famoso psicanalista Sigmund Freud. É nesta ala que teve destaque uma escultura hiper-realista do impressionante Ron Mueck, Pai morto. Esse escultor australiano (hoje baseado na Inglaterra) costuma esculpir em escala fora do padrão humano, optando pelo gigantismo ou nanismo de suas esculturas, sempre respeitando as exatas proporções do corpo. Em Pai morto é possível ver os pelos da perna do cadáver, já grisalhos pela velhice, as rugas, o ar cadavérico: parece real, não fosse o tamanho diminuto. Acima dele, outra obra Neoclássica, de Bouguereau, também representando a morte.

("Dead dad", Ron Mueck. Atrás o quadro de Bouguereau)


("David and Eli", Lucian Freud)

E claro que também havia a sala sobre “o homem desejado”, representando a homossexualidade evidente; e a sala “aventura ambígua”, revelando inúmeras obras do século XIX que possivelmente tentavam abordar a homossexualidade, mas não podiam ser tão claras e se utilizavam de artifícios. Na entrada da ala “o homem desejado”, havia uma placa de advertência a quem pudesse se chocar com o que fosse ver lá dentro, assim quem quisesse dar meia volta, pegaria outro caminho da exposição. Apesar do aviso, ali não havia nada demais: uma fotografia antiga mostrando um beijo, ou um quadro de rapazes andando de bicicleta, um deles com a parte pontiaguda do banquinho sugestivamente entre as nádegas do ciclista, entre outros quadros.


Em “aventura ambígua” era realmente interessante ver quantos subterfúgios eram necessários para conseguir representar uma temática possivelmente homossexual no século XIX. Havia, por exemplo, quadros de São Sebastião flechado. Outra possibilidade era representar, dentro dos ditames do Neoclassicismo reinante, figuras da antiguidade clássica, que claramente tivessem alguma amizade muito forte: como Aquiles e Pátroclo da Ilíada; ou Apolo e Ciparisso da mitologia. Nesse caso, faziam uso de corpos mais andrógenos, menos musculosos. Uma das formas (praticamente a única forma) de mostrar o amor entre os personagens era na morte, pois ao apoiar ternamente o corpo do amigo que morre, ninguém poderia criticar suas lágrimas de dor.

("A morte de Hyacinthe", Jean Broc)


("Apolo e Ciparisso", Claude-Marie Dubuffe)

O último quadro da exposição, terminando também a jornada pela “aventura ambígua” é o quadro simbolista Escola de Platão, de 1898, de Jean Delville. Nesta tela, na qual a figura central se parece com a imagem europeia difundida de Jesus Cristo, há vários alunos, alguns têm flores na cabeça, outros se abraçam e se olham ternamente: parecem estar todos em “amor platônico” uns com os outros.

("Escola de Platão", Jean Delville)

Apesar de todas as críticas – ou muito por causa delas – Masculin/Masculin foi um sucesso de público. Filas intermináveis se formavam do lado de fora do museu e a exposição, que iria de 24 de setembro de 2013 a 02 de janeiro de 2014, foi prorrogada por mais algumas semanas. Eram tantas pessoas, que as salas estavam – como diz um dos quadros expostos – about to explode!

("About to explode", Eminem, David LaChapelle)

 Nestes tempos difíceis (em que vemos revogação na Austrália da lei que permitia o casamento entre pessoas do mesmo sexo, Olimpíadas de Inverno em Sochi na homofóbica Rússia, bancadas evangélicas que só crescem no Brasil, hordas noturnas que querem expulsar os gays a pauladas do Aterro do Flamengo, passeatas contra a igualdade civil na França), é bom ao menos vermos exposições assim: com timing político, enfrentando questões atuais, sem se evadir de uma parte de provocação.

E apesar de tudo, eu ainda me fixo nos progressos recentes e acredito que seja por causa deles, tão evidentes, que as reações conservadoras vêm crescendo. Ao menos no Brasil, eu olho ao redor e vejo que as pessoas se casam! Vi até as pessoas aplaudirem uma novela na qual um casal de homens se beija (mesmo que uma vez só e no último capítulo).

E eu, que sou romântica e entusiasta do casamento de todos, só posso ficar “about to explode” ao sair de uma exposição tão linda como essa.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Carolus Duran e o Museu Casa da Hera


Uma das obras mais queridas do público visitante do Museu Casa da Hera (antiga residência de uma família herdeira do áureo período cafeeiro fluminense) é o quadro de Eufrásia Teixeira Leite. Trata-se de uma pintura a óleo, pintada na França no século XIX, que retrata a elegância e a beleza da última proprietária da casa.

(Eufrásia Teixeira Leite, 1887. Carolus Duran. Museu Casa da Hera)

É claro que nós, visitantes, gostamos do todo: as flores do jardim, a paz do túnel de bambus na grande chácara, a cor viva dos papéis de parede da casa, a louça pomposa do jogo de jantar, a delicadeza dos lustres, o peso das cortinas, o luxo das roupas, o ranger da madeira antiga do piso: aquele ar inebriante de passado. Portanto, não faltam objetos que servem como suporte de memória de um tempo próspero, para adorarmos naquele museu: mas certamente é a imagem da proprietária que dá rosto àquele passado, é ela que dá alma à história da casa. A imagem de Eufrásia (financista que decuplicou a fortuna do pai e benemérita que doou o patrimônio em testamento para instituições de caridade, de ensino e de pesquisa) é o que nos faz sonhar.
Quem pintou esse quadro de fundo vermelho imponente? Será que bastaria tentar ler a assinatura do quadro (muitas vezes algo que se precisa decifrar) para saber quem foi o autor? Teria sido alguém importante? Famoso? Quais relações ele manteve com Eufrásia? Pintou outras mulheres da burguesia ou da aristocracia?
Trabalhando em um texto sobre a história do museu, recorri aos materiais já impressos sobre a história de Eufrásia e sobre a casa: não eram muitos, infelizmente. Dizia um dos antigos folhetos do IPHAN que o pintor se tratava de “Lawlis Duray”. Olhei para a reprodução do quadro e, influenciada pela tradução que a instituição mantenedora do quadro um dia informou, li a mesma coisa: “Lawlis Duray” era o que parecia ser aquela assinatura estilizada no alto, à esquerda do quadro. O “L”, porém, era uma birra minha, pois parecia estar em minúscula e bem curvilíneo. Coisa de artista, pensei.
Procurei por Lawlis Duray em livros e em artigos pela internet e não encontrei nada. Ao que parece, ele nunca existiu. Tratava-se apenas de uma decifração mal sucedida da assinatura do quadro. Mas foi a própria instituição que percebeu o erro e já o corrigiu. A assinatura diz “Carolus Duran”, informaram-me os funcionários do museu. Revi o “n” de longa perna que parecia um “y”, entendi como era fácil ser confundido por ela, e fui pesquisar quem foi Duran. Encontrei algumas referências, sempre em sites estrangeiros, e algumas imagens, mas nada que me desse a real dimensão de quem ele realmente foi. Para se ter uma ideia, o verbete sobre ele na Wikipédia brasileira só tinha data de nascimento, de morte, nome completo e nacionalidade.
Como a correção da informação sobre o nome do pintor de Eufrásia ocorreu há poucos anos, infelizmente outros materiais já haviam reproduzido o nome “Lawlis”, quando fizeram menção ao quadro: não só textos na internet, como até romances de grandes editoras. Daí reside a necessidade da precisão das informações cedidas pelos museus, pois estes, como mantenedores das obras, são quase sempre vistos como referências incontestáveis sobre seus temas. E essa simples história revela, mais uma vez, a importância da pesquisa contínua dos museus acerca de seu acervo, de seu público visitante, de sua história institucional e de seus temas.
Poucos anos depois, imaginem qual não foi minha surpresa ao deparar-me com Duran duas vezes, no mesmo dia, em Paris?! Andava pelas salas do Museu d’Orsay, quando um quadro de grandes dimensões chamou minha atenção. Era uma mulher vestida de negro, em um fundo sóbrio, lançando sua luva branca ao chão escuro, onde sabiamente o pintor assinou seu nome em vermelho, bem embaixo da luva: Carolus Duran, 1869.

(La dame au gant, 1869. Carolus Duran. Museu d'Orsay)

Levei um susto. Um quadro enorme, exposto em um dos museus mais famosos do mundo, do mesmo autor do quadro de Eufrásia, que tínhamos em um pequeno e humilde museu-casa no interior do Estado do Rio de Janeiro. Uma tela daquele mesmo autor, tão pouco conhecido dos brasileiros, que um dia foi lido como Lawlis.
Andei mais alguns passos e lá estava outro belo quadro, igualmente grande, de 1897, de sua filha mais velha na companhia de seus netos. Tentei imaginar a quantidade de obras importantes na reserva técnica do Museu d’Orsay, para entender a importância de Carolus Duran para a pintura francesa do século XIX: obviamente, se um museu com esta reserva escolheu expô-lo, é porque se tratava de alguém de peso que deveria ser mais conhecido no Brasil.


(Retrato Madame Fayedeau, 1897. Carolus Duran. Museu d'Orsay)

Ao final do dia, caminhando pelas salas do Petit Palais, outro museu de acervo conhecidamente invejável, encontro mais dois grandes quadros de Duran que quase me fizeram cair para trás. A coincidência foi tão grande, que parecia que Eufrásia estava querendo me mostrar que não havia escolhido um pintor qualquer para retratá-la, e que nós precisávamos conhecê-lo. Uma das telas representava a típica parisiense provocativa da segunda metade do século XIX, apertada por seu espartilho sob um vestido de cetim claro bem justo no corpo, deitada sobre uma chaise, onde se via cair metros de saia, franjas e bordados da barra do vestido e uma cauda. Em decote de festa, estava apoiada em almofadas vermelhas, com um olhar de extrema autoconfiança. 

(Mademoisele Lancey,1875. Carolus Duran. Petit Palais)

O outro quadro, vertical e alto, mostrava uma mulher de vestido completamente vermelho, saindo de um longo e escuro casaco de peles, em um fundo igualmente avermelhado.
Convencida de que Eufrásia escolheu um dos retratistas mais famosos de sua época para reproduzi-la, trago aqui um pouco da biografia e da obra de Carolus Duran, e as possíveis razões para o seu até então desconhecimento no mundo museal: o ostracismo humilhante a que foi submetida a pintura acadêmica do século XIX, pela crítica modernista durante grande parte do século XX. Como se vê, pelos espaços nobres que pintores como Duran agora ocupam em museus famosos, a pintura acadêmica oitocentista (anterior às vanguardas impressionistas, simbolistas e expressionistas de pintores conhecidos à exaustão, como Monet, Klimt ou Van Gogh) está finalmente em processo de revisão e de nova aceitação pela crítica da arte.

Charles Emile Auguste Durand (ou Carolus Duran, seu nome artístico), nasceu em Lille, nordeste da França, cidade próxima da fronteira com a Bélgica, em quatro de julho de 1837. Aos 11 anos iniciou seus estudos na Academia de Belas Artes de Lille, primeiro com aula de desenho com o escultor Augustin Phidias Cadet de Beaupré, depois, aos 15 anos, iniciou um curso de dois anos de pintura com François Souchon, um pupilo do consagrado pintor Neoclássico Jacques-Louis David. Deste início de formação, percebemos que Duran começou pelo o que era praxe na época: um sistema de aprendizado sólido e uniformizado, acadêmico.
O método acadêmico de ensino da arte (ou de produção da arte) podia parecer maçante, repetitivo, pouco criativo e muito hierarquizado (novos passos só eram dados quando os anteriores já estavam sedimentados), mas era um modelo de “eficiência comprovada”. Se o aluno terminasse a academia, sendo aprovado em todas as matérias, podia-se considerar alguém que sabia desenhar e pintar. A genialidade, no entanto, sempre foi e sempre será graça para poucos.
Em 1853 Duran vai para Paris, onde logo começa a adotar o pseudônimo e, entre 1859 e 1861, frequenta a Academia Suíça (uma escola de pintura mais liberal que a institucional Academia de Belas Artes). É na Academia Suíça que ele conhece o Realista Gustave Courbet, um dos revolucionários da pintura oitocentista francesa. Tornou-se amigo de outro contestador dos cânones da época: Edouard Manet. Em 1859, Duran conseguiu expor no Salão de Belas Artes pela primeira vez. De 1862 a 1866, viajou para Roma e Espanha, com uma bolsa de estudos de sua cidade natal. Seu estilo se transforma: negligencia a influência de Courbet pela de Diego Velázquez. De volta à França, foi premiado pela primeira vez com uma medalha de ouro no Salão de 1866.
Na época, os pintores submetiam seus quadros aos salões anuais (por vezes bienais) das belas artes: era a grande chance de serem vistos, comprados pelo público visitante e, acima de tudo, era o local onde almejavam receber as medalhas ou as menções honrosas do Estado francês. A honra máxima era ganhar a medalha de ouro e ter o quadro comprado pelo Estado. Os quadros medalhistas eram comprados pelo Estado e levados para o “museu dos artistas vivos”: o Museu Luxemburgo, uma honra para poucos.[1]
O Louvre, famoso tanto hoje quanto naquela época também, era um museu de artistas mortos (os já consagrados mestres). O Museu Luxemburgo era o grande show de arte contemporânea da época, pois abrigava as obras medalhistas dos artistas mais recentes ou mortos há menos de 10 anos. Depois de mais de 10 anos de falecimento, o Estado francês consideraria se era pertinente fazer a mudança das obras do Museu Luxemburgo para as salas do Louvre (honra inaudita), ou se guardava as peças nas hoje ditas reservas técnicas (fenômeno mais comum).
O Museu d’Orsay, um grande mantenedor de pinturas, esculturas e objetos de arte franceses de meados do século XIX e início do XX (um museu da “modernidade” artística francesa, muito conhecido por sua formidável coleção impressionista) diz que – cronologicamente – suas obras estão entre o Louvre (um museu de arte antiga, medieval, renascentista, barroca, neoclássica e romântica) e o Pompidou (um museu de arte moderna e contemporânea). Cronologicamente, os visitantes podem fazer um passeio pela história da arte ocidental (mas, sobretudo, história da arte francesa) desde o período antes de Cristo, até os dias de hoje (mais de dois mil anos!), percorrendo Louvre, d’Orsay e Pompidou.
O Museu d’Orsay abriga inúmeras obras medalhistas do século XIX. Sua expografia remodelada em 2011, data de seu aniversário de 25 anos, revela a história da arte francesa oitocentista, sem diminuir a produção acadêmica anterior aos grandes rompimentos vanguardistas, que o museu também continua a expor, de forma cronológica e didática em andar distinto: o quinto andar, o mais amado e buscado por todos os amantes do Impressionismo de Manet, Monet, Renoir, Pisarro, etc.
É pela opção de expor os medalhistas que encontramos obras de Carolus Duran em suas concorridas e consagradoras paredes: o quadro “Madame Feydeau” (retrato de sua filha, casada com o ator dramático Georges Feydeau, e seus netos) foi comprado pelo próprio Estado francês em 1897, no salão da Sociedade Nacional de Belas Artes. Bem antes desse, ainda no ano de 1869, o quadro “A dama de luvas”, retrato de grandes dimensões da própria esposa do artista, foi um grande sucesso na exposição do Salão de 1869, onde obteve uma medalha. Considerado pela crítica como o arquétipo do retrato formal, de corpo inteiro, a obra revela uma sobriedade na composição, destreza no desenho e delicadeza no uso restrito da gama de cores, o que lembrava Ingres. A luva que ela lançou ao chão, sublinhada pela assinatura do artista, dava uma ideia de movimento. Dava um sentido de instantaneidade moderna ao quadro. Por essas razões, Emile Zola, amigo dos pintores vanguardistas, apreciava Carolus Duran. Este quadro também foi comprado pelo Estado, alguns anos depois, em 1875.  
Medalhista de ouro em 1866, depois largamente elogiado pelo retrato de sua esposa de luvas em 1869, Carolus Duran passa a se dedicar àquilo que parecia fazer melhor e lhe dar bons frutos: retratos. Diferente de muitos pintores, hoje consagrados, mas que penaram para conseguirem sustentar-se da venda de seus quadros e alcançar sucesso em sua época, a ascensão de Duran foi meteórica, sobretudo porque ele se ligou às pessoas mais ricas e influentes da sociedade parisiense, ávidas por serem eternizadas.
Como nos diz a plaqueta explicativa do Petit Palais, ao introduzir o quadro “Retrato de madame Edgar Stern”, Carolus Duran foi o pintor por excelência da parisiense, ele representava as mulheres elegantes de seu tempo. Brilhante colorista, de audácia calculada, ele renova o retrato formal, modernizado por uma preocupação com a verdade e uma maneira de pintar livre e ampla. Seu sucesso como retratista o conduziu até aos Estados Unidos, onde pintou as famílias ricas de Nova York. Em Paris, neste quadro vermelho de 1889, ele representou a esposa do banqueiro Edgar Stern, que também era escultora. É vermelho sobre vermelho.

(Madame Stern. Carolus Duran. Petit Palais)

E por falar em quadros vermelhos, o que revela sua habilidade tanto para a delicadeza das poucas cores da “dama de luvas” assim como para a intensidade das cores quentes, não podemos esquecer o quadro de Eufrásia. Neste quadro, que só reforça o que já sabíamos dela e agora sabemos dele, Duran representa uma das mulheres ricas e elegantes da sociedade parisiense do século XIX, conhecida como “la brésilienne”: em fundo vermelho.
Em uma carta que parece ser de 1878, Eufrásia escreve ao seu amado Joaquim Nabuco que havia começado a posar para Carolus Duran: “Passei a semana a mais triste possível, como era absolutamente necessário distrair-me, comecei o meu retrato, o Carolus prometeu-me fazer um chef d’ oeuvre e disse-me que quer perder a reputação que tem, se não for este um dos seus melhores retratos, como pintura, se entende.” O quadro de Eufrásia foi terminado em 1887, como se vê pela data colocada por Duran abaixo de sua assinatura.
Ainda não é possível saber se a atribuição da data da carta está errada e, ao invés de ser de 1878[2] seria já avançada na década de 1880, ou se houve uma interrupção grande na pintura do quadro. É mais provável que a carta seja da década de 1880.
Chef d'ouevre significa obra prima, mas por muito tempo achou-se que a palavra "ouevre" estava grafada como "amour". De qualquer forma, a referência íntima sem apresentações, no trecho “o Carolus prometeu-me”, nos indica que tanto Eufrásia quanto Nabuco conheciam o pintor, talvez fosse um amigo de ambos. Alguns acreditam que Eufrásia talvez estivesse tentando enciumar Nabuco ao fazer referência, em uma carta, a posar para um pintor.
O que é certo é que Duran pintou este quadro de fundo vermelho de Eufrásia um pouco antes da grande tela escarlate da madame Stern. E o vermelho esteve presente em muitos outros quadros de Duran, em um deles até a modelo era ruiva.





Embora não seja considerado nenhum vanguardista, Duran foi respeitado por Emile Zola como alguém que inovava, ainda que na medida do gosto do grande público (que é quase sempre conservador). Segundo Zola, “Carolus-Duran é um habilidoso, ele torna Manet compreensível ao burguês, ele se inspira indo apenas às limitações conhecidas, temperando-as ao gosto do público. Acrescentem que é um técnico muito hábil, sabendo agradar a maioria”.
Se repararmos, apesar do desenho bem executado, típico do academicismo, há leves toques de uma pintura mais livre, flertes com algumas pinceladas impressionistas. Carolus-Duran foi capaz de navegar entre o academicismo e a experimentação de seus contemporâneos mais ousados, como seu amigo Edouard Manet. Ao fazer um retrato de Manet, um impressionista, Duran o fez totalmente dentro da técnica do amigo: impressionista. Ele só não inovava mais para as senhoras da elite, porque elas queriam se ver na precisão do desenho e não na impressão de um momento.


(Retrato de Edouard Manet. Carolus Duran. Museu d'Orsay.) 
(Este quadro não foi comprado pelo Estado, foi doado no século XX, quando o d'Orsay foi criado).

Carolus Duran lecionou pintura em um ateliê próprio e obteve inúmeros títulos e prêmios: Legião de Honra em 1872, oficial em 1878, comandante em 1889 e Grande Oficial em 1900. Nos anos de 1889 e 1900, foi membro do júri dessas duas Exposições Universais. Ele foi cofundador da Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1890. Foi eleito membro da Academia de Belas Artes em 1904. Foi nomeado diretor da Académie de France em Roma, em 1905, cargo que ocupou até 1913. E morreu em Paris em 1917.
Nós batemos os olhos numa assinatura de Monet e imediatamente a reconhecemos. Olhamos um Andy Warhol pendurado numa parede e sabemos quem é o autor. Ouvimos falar o nome Van Gogh e imediatamente lembramos-nos de parte de sua biografia, como seu processo de loucura, o corte da orelha, as ajudas do irmão. Vemos o sorriso da Monalisa e pronunciamos sem perceber “Da Vinci”. Esses são monstros sagrados, não os quero comparar com Duran. Mas acredito que este texto tenha trazido argumentos suficientes para que nós ao menos saibamos seu nome e tenhamos orgulho de ter um quadro seu em um museu de orçamento tão modesto, numa pequena cidade do interior fluminense: mais um dos presentes de Eufrásia, que sempre nos surpreende.
Pergunto-me se museus como o d’Orsay, o Petit Palais e os museus de Lille sabem que nós também temos um Carolus Duran: é provável que não. Uma pena, pois o intercâmbio dessas informações seria interessante, assim como a aparição do quadro de Eufrásia no sistema de busca pelo nome de Duran na internet. Que ela também seja referência de Carolus Duran para o mundo todo!





[1] Para que se pudesse sonhar com tudo isso, no entanto, era preciso primeiro ter os quadros aceitos por um júri que definia aqueles que poderiam participar do Salão. A recusa de muitos trabalhos era praxe e muita polêmica se criava. O ano de 1863 tornou-se célebre, pois três mil artistas submeteram cinco mil trabalhos a serem apresentados no Salão, que obviamente não teria espaço para tanto. As recusas começaram e o alvoroço foi tão grande, que os artistas pediram ao Imperador Napoleão III que tomasse alguma providência, pois pintores e escultores precisavam daquele espaço para dar visibilidade a seus trabalhos. Napoleão III, então, ordenou que fosse criado um segundo salão, anexo ao original, com o nome de “Salão dos Recusados”. Entre os recusados, gente que possuía coragem e audácia para testar e inovar, estavam pintores hoje consagrados, como o impressionista Edouard Manet.
[2] Afinal, esta é a carta que vem datada apenas como “Domingo”.  Atribui-se ao conturbado período “fim de 1877 e início de 1878” por causa do “domingo” aparentemente irritado, época em que Eufrásia estava irritada por Nabuco ter prometido ir vê-la, mas não compareceu, o que a obrigou a encurtar férias por nada. É interessante notar que, apesar de atribuída a 1878, existe uma marcação a lápis no alto da carta, provavelmente feita por algum funcionário da Fundação Joaquim Nabuco: “84?” A interrogação permanece.

#Museu #Belgica #Paris #Arte #CasadaHera #EufrasiaTeixeiraLeite #CarolusDuran